domingo, 11 de abril de 2010

Luanda: impressões, parte II

A vida na maior parte da cidade de Luanda pode revelar uma infinita capacidade de sobrevivênciam e de adaptação à adversidade. Não na Luanda rica, na outra, a que claramente é dominante.

A rica Luanda é limpa e bem parecida, podendo fazer imagem de postal tuístico, senão agora, daqui a uns anos. Não faz porque oficialmente não se podem tirar fotografias a monumentos, pessoas ou paisagens, só à socapa é que se vão registando algumas imagens. Não entendo porquê, afinal a magnífica baía de Luanda e a Avenida Marginal poderiam representar o ex-libris angolano vocacionado para o turismo em meio urbano, ou de negócios. O património de traçado colonial tem vindo a perder-se, ao que soube. Pena, penso eu, já que os edifícios são de extrema beleza e o passado, bem ou mal recordado, faz parte da História de cada um, e de todos em conjunto, e não se deve renegar. Os condomínios fechados de luxo proliferam dando a sensação de que aqui o dinheiro se multiplica. O Centro Comercial na entrada da cidade dá conta disso: lojas estrangeiras de marca registada; restaurantes com esplanada; cinemas com estreias europeias; parque de estacionamento vigiado com guarda e pago. Na Luanda rica sonha-se e tem-se a sensação de que os sonhos são concretrizados. Tudo é possível: ter casa com piscina e court de ténis, segurança 24h por dia, toda a espécie de mordomias. A vida é um luxo e tem de ser bem aproveitada. Só que não é para todos, não pode ser porque se todos tivessem acesso deixaria de ser a cidade mais cara do mundo, ainda mais do que Tóquio. Como poderá ser, pergunto-me depois de ter uma panorâmica geral. E não é preciso andar por cá muito tempo para perceber como tudo funciona.

Na Luanda pobre, o lixo abunda, reproduz-se com uma enorme facilidade, aparece em qualquer local, está em toda a parte. É de todas as formas e feitios, misturam-se plásticos e latas com papel, matéria orgânica e indiferenciados, lodo e resíduos animais e humanos. Há de tudo um pouco. As pessoas convivem com os lixos com a maior normalidade. Fazem parte da vida uns dos outros como se fossem indissociáveis. As vendeiras, quitandeiras ou zungueiras, montam as suas pequenas bancas junto de amontoados de lixo, fazendo pequenas ou grande lixeiras, dependendo dos casos. As pessoas que por ali passam, e são muitas, parecem milhares num vai e vem sem parar, compram uma maçã, um alguidar, uns chinelos. O que houver. E há de tudo porque em Luanda tudo se vende e de tudo se compra.

As diferenças são abissais: os ricos são muito ricos e os pobres, mais do que isso, são miseráveis. Aqui percebe-se o que é viver abaixo do limiar da pobreza. Mais do que a análise dos relatórios e dos indicadores oficiais, uma incursão à Luanda pobre é uma experiência enriquecedora por se conseguir avaliar o quanto é dura esta realidade. Pior do que não ter o mínimo para viver, é conviver com lixeiras, nelas brincar e chapinhar em poças lamacentas porque dá para refrescar, desatolar um carro que ficou enterrado no lodo, quase submerso, e depois lavar as pernas e os pés lamacentos numa poça de água verde, com resíduos e seguramente carregada de bactérias e fungos, mas sentir a aliviada sensação de estar limpo de novo. Esta é uma experiência dura: contactar com a pobreza conformada e sem esperança. Por muita vontade que se tenha em contribuir para a mudança, porque se está descontente com a forma de vida, a resposta é sempre a mesma: para quê? Só eu penso assim, não vale a pena. E assim tudo permanece. O trabalho não permite ganhar a vida, só sobreviver, as crianças vivem como os pais viveram, eventualmente com menos até.

Ontem, num dos bairros de Luanda pobre, enquanto por lá andei fui falando com mulheres, crianças e alguns homens, Fotografiei-os e fez-se festa. A alegria era comum a quase todos porque o dia era diferente dos anteriores e dos que se seguem, mas também porque lhes chegou um pouco de vaidade e orgulho quando os deixei ver o quanto são bonitos e sorridentes. Foi um dos momentos raros em que alguém de fora os visita, fotografa e acarinha. Tudo corria bem para eles até que um dos mais velhos decidiu que o fim da festa tinha chegado e pegou num chinelo encarnado que, como outro qualquer objecto coersivo, resultou na perfeição dispersando os mais novos. Sim, estes conhecem o peso do chinelo e a sensação do impacto da borracha na carne. Ainda chegou a tocar em alguns mas seria certamente mais incisivo se eu não tivesse intervido. Tinha sido ele quem tinha pedido as primeiras fotos e ficara orgulhoso de si mesmo quando se viu e pediu mais. Porque não teriam os outros direito a uma foto e a ser vaidosos? Sorriu e de forma condescendente respondeu: só mais uma, então. E assim foi. Percebi depois que estava num dos locais com maior índice de criminalidade da cidade, eventualmente do país. Todos me olhavam com ar de curiosidade acrescida mas, apesar das intensas recomendações, não senti animosidade por parte de ninguém.

Manual de sobrevivência em meios socialmente hostis

Presenciando cenas pela manhã bem cedo recordo uma pessoa que conheci em São Tomé e Príncipe há uma eternidade e de quem perdi o rasto há ...