sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Lembranças duras de aroma adocicado

A vida é mesmo assim, leva-nos por caminhos impensados, puxa-nos muitas vezes para fora da nossa zona de conforto e de seguida afasta-nos do que passámos acreditar que era o nosso caminho. Depois, de tempos a tempos, o coração volta a saltar e o pensamento regressa a paragens distantes, a locais por vezes inóspitos, a contextos difíceis, mas onde a ternura se transmite num olhar curioso, num sorriso tímido ou num gesto de apoio inesperado.
A Guiné-Bissau é assim para mim. Fui até lá há muitos anos, por opção, com uma imagem criada talvez só por mim e que fui desconstruindo à medida que os dias foram passando, que o regresso se fez sentir e que a minha vida mudou sem aviso. Era o ano de 1996. Confrontei-me com muita coisa, talvez não estivesse preparada para vivenciar modos de vida tão diferentes e para aceitar, apesar de nem sempre compreender, que neste Mundo, nem todos pensamos da mesma maneira, quanto mais vivemos. Foi uma experiência dura para mim, é certo, mas foi muito enriquecedora. Depois tive um longo afastamento pessoal da Guiné-Bissau. Dei comigo a pensar em Moçambique, depois em Cabo Verde e de forma mais consistente em São Tomé e Príncipe, para onde me mudei e onde vivi por uma temporada. Até que o regresso à Guiné-Bissau se fez presente de novo, desta vez de uma forma mais madura e preparada para as muitas diferenças que encontrei. E voltei, uma e outra, e mais outra e tantas vezes. E sempre que regressei encontrei diferentes Guinés-Bissau, apesar do país ser o mesmo. Andei por todo o país, conheci paisagens tão diferentes, uma enorme diversidade de padrões culturais e de grupos étnicos. Tive contacto muito directo com régulos e conselhos de regulado, com homens grandes e grupos de mulheres empreendedoras, com diferentes credos e com crianças lindas e alegres.
Em todos os momentos em que estive na Guiné-Bissau tive a oportunidade de viver experiências fantásticas, de contactar com especificidades magníficas tanto naturais como culturais, mas havia sempre, e em todos os momentos, um factor que marcava as idas, as permanências e os regressos: a instabilidade política, a incerteza quase regular em relação à forma como os dias decorriam. E este tornou-se, para mim, um aspecto desconcertante.
Agora estou há uns anos sem ir à Guiné-Bissau, mas continuo interessada no rumo da vida e no seguimento dos acontecimentos, procurando vislumbrar sinais de uma estabilidade que gostaria que o país tivesse, mas que parece difícil de implementar. E a cada novo percalço que os guineenses vivem, de forma quase cíclica, muitas imagens regressam à minha cabeça. Mas há uma que, inevitavelmente, assalta a minha memória: o despertar dos morcegos com o anoitecer em Bissau esvoaçando em busca de mangas, salpicando o chão e deixando no ar um aroma adocicado e intenso...

A intensidade do ocaso

Que sensação estranha... deixar para trás o ocaso com as suas cores tépidas e mergulhar no escuro da noite. Ainda mais com os pés frios. Sempre gostei de contemplar o ocaso, preenche-me e reconforta-me. Faço-o sempre que posso. Amiúde e indiferentemente do local onde esteja. 
Esta hora é infinitamente mais bonita no campo do que na cidade. Independentemente do campo que visite ou da cidade por onde passe. As cores e os contornos das árvores e dos arbustos contrastando com a intensidade da luz que os realça. A paz que todo o ambiente inspira dando-me a sensação de que estou a viver um momento zen. Tudo me parece mais intenso e genuíno no campo. Além das cores, as sensações, os encontros, as conversas, os silêncios, a solidão, a vida... 
A vida é intensa no campo e intenso é o tempo que se vive e partilha. Momentos marcados pela intensidade que facilitam a observação, a contemplação e a interpretação do que a natureza na sua máxima expressão tem a dizer e a dar. A nós, só cabe receber e acolher com a mesma intensidade...

Da Covilhã para Lisboa, 29 de Janeiro de 2018 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Palavras que nunca direi a um sentimento perdido

Sim, eu sei, não tenho de o fazer, mas se, por algum acaso desta vida, tivesse, poderia dizer-te com total certeza: «eu fui muito feliz contigo».
Nem sei porque é que este pensamento veio até mim agora. Logo agora, passados tantos anos. Mas veio. E, como em quase tudo nesta vida, eu acredito que temos de ser justos e honestos, connosco e com os outros. Sempre te disse isso. E tu foste tão pouco. Duplamente, porque foste pouco justo e pouco honesto. E eu duplamente burra porque muito crédula e muito honesta, comigo e contigo.
Lembras-te de ouvirmos em conjunto - às vezes muito juntos - o "Honesty" do Billy Joel? Lembras, certamente porque o som acompanhava-nos no jantar dando direito a conversas sem fim, a sorrisos, a  algum riso e muitos silêncios. Esta música também estava num dos cerca de 100 CDs que, quando parti, te emprestei, a teu pedido. Ou doei... ou dei... Vá-se lá saber que acasos desta vida fizeram com que tu nunca os devolvesses. Nem os CDs nem a pasta que os protegia. Vá-se lá saber a que mãos e ouvidos foram parar. E que corações foram tocar... Talvez eu até sempre tenha suspeitado, mas talvez isso agora não interesse saber. E também talvez nunca tivesse feito sentido procurar saber...
Esmiuçar o passado é desenterrar as memórias mais profundas, até aquelas que não queremos mais lembrar, por isso o certo é deixá-las estar no sítio de onde não devem sair...
Mas vou-te dizer uma coisa que talvez devesses saber. Para  mim, o pior de tudo foi perder a pasta. Era de pele, genuína e tinha um valor, mais do que material, simbólico e afectivo. Não sabias e não tinhas de saber, tinhas apenas de devolver. Nunca mais a vi e custa-me acreditar - apesar de ser mais do que claro e óbvio para mim - que a ofereceste num momento de delírio estúpido, ou de falta de lucidez causado por um qualquer entusiasmo e empolgamento a que tanto eras dado.
Pois foi, apesar de tudo fui feliz contigo e tu foste tão infinitamente estúpido. Talvez ainda sejas. Acredito que a estupidez afectiva não se corrige, ao contrário, agrava-se com a idade e a tua já deve pesar um pouco. Se continuas estúpido, sinceramente já não me interessa comprovar. Deixo a tarefa da certificação para quem tenha vontade ou paciência para passar por provações dolorosas...!

NOTA BEM: os CDs eram cópias, o único valor que tinham era mesmo o sentimental por estar associado a uma época, e esse acaba por se esbater com o tempo até desaparecer...

Lisboa, 3 de Janeiro de 2018, a propósito de um sentimento perdido algures na proximidade do Equador

Manual de sobrevivência em meios socialmente hostis

Presenciando cenas pela manhã bem cedo recordo uma pessoa que conheci em São Tomé e Príncipe há uma eternidade e de quem perdi o rasto há ...