A chegada ao Canchungo fez-se no final da tarde de domingo. A primeira impressão foi de estranheza: afinal aquilo que mais me parecia um povoado alargado era mesmo uma cidade. Só podia ser pelo número de habitantes porque no que toca às infraestruturas, tanto de acolhimento como de apoio, ou de ligação, aquele espaço estava a anos luz de ser urbano. Já vi muitas cidades em África, com características muito diferentes mas aquela era de facto diferentes. A estrada de acesso era “picada”, com tantos acidentes de relevo quanto a que ligava a cidade a Bula, talvez até tivesse mais altos e baixos, devido ao trânsito excessivo associado aos efeitos das chuvas.
Uma das primeiras imagens que retive, e que ainda guardo por ser impossível de esquecer, foi a dos abutres, claro. Ali estavam eles em quantidade, para não fugir à regra, só que em vez de sobrevoarem as ruas, estavam tranquilamente pousados em cima dos telhados, mirando o que se passava apenas uns metros abaixo dos seus bicos. Espertos, pensei eu cá para comigo, assim não se cansam e sempre que percebem que há desperdício, qualquer que ele seja, lá se dignam a uma incursão até ao solo. Estes são de facto animais que não gostam de estragação...
O fim da estrada desembocava num largo, que eu vim a perceber depois que era a principal praça da cidade. Ali era o centro onde tudo se passava e dali era possível partir para todo o lugar, a qualquer hora do dia ou da noite. Bastava acertar com o condutor. Na praça tanto se vendia pão, tipo baguete mas mais larga, menos estaladiça e com a massa mole, como cartões de telemóvel. Era possível apanhar transporte para a capital, para o Cacheu, Caió, Calequisse ou qualquer outra localidade, e chegava-se da região ainda mais ao norte, São Domingos, em particular depois do conflito ter começado. Ali jogava-se “oril” e cartas, bebia-se o que houvesse e conversava-se, vendiam-se animais e até bananas. Aquela praça foi para mim o principal ponto de referência nos primeiros dias por ser ali que eu ia jantar, invariavelmente pelas 20 horas, no único local que me disseram ser possível: as traseiras da Casa Monteiro, que era uma “loja vende tudo o que há”. Era um pequeno restaurante chamado “Vulcão”, onde tanto se assistia ao telejornal ou a um jogo de futebol, como se bebia cerveja ou comia qualquer coisa. Eu jantava e escrevia as palavras que me vinham à mente, pela associação de ideias que o local e as experiências do dia possibilitavam. Mas ao “Vulcão” voltarei com mais pormenor porque este foi um local importante durante a estadia.
No Canchungo fui directa à Associação que me acolheria e cujos representantes iriam trabalhar comigo nos dias que se avizinhavam. O local pareceu-me apaziguador, tranquilo e absolutamente pacífico. O terreno era vedado mas aberto, o que pode parecer um contra-senso: vedado apenas para demarcação de espaço; aberto a qualquer visitante que chegasse em paz, conforme se veio a confirmar uns dias mais tarde. A casa era simples, tal como os seus habitantes: acolhedores, afáveis, amistosos e simpáticos, trabalhadores e muito organizados, com um grande espírito solidário. Eram pessoas simples e despretenciosas que me puseram à vontade como se me conhecessem há um bom par de anos. Ele era o Leandro e ela a Didi, um casal engraçado e que fez tudo para que me sentisse em casa. Em breve virá um Moisés, ou quem sabe uma menina.