quarta-feira, 10 de agosto de 2005

PERCEBERAM?

É comum e absolutamente terrificante quando, no meio de um jantar de família para comemoração dos anos de alguém, Natal ou Páscoa, um tio ou uma tia, que nos habituámos a ver pouco, nos pergunta quando é que casamos e porque é que não pensamos em ter filhos. Dá vontade de fugir para bem longe, mas como não o podemos fazer, apetece dizer, com um sorriso o mais natural possível mas que sai forçado, que preferimos os filhos dos outros, os sobrinhos, porque ficamos pelo afecto e pela brincadeira, somos mais permissivos e só temos a parte boa. Os filhos responsabilizam-nos mais do que normalmente desejamos e nem sempre estamos dispostos a abdicar da vida confortável e egoisticamente formada, cheia de liberdade e de individualismo. E depois ainda temos vontade de dizer que o casamento se vai fazendo conforme se entende, ao ritmo de cada um e sem a formalidade do tradicionalmente estabelecido. Mas ficamo-nos pela vontade de exprimir o descontentamento em relação às dúvidas de cada um e respondemos com evasivas sorridentes enquanto vamos até à cozinha para ir buscar um copo que não faz sequer falta na mesa, esperando que, no regresso à sala, o tema tenha mudado para as Presidenciais... É que a fama de ter mau feitio não nos abandona e, se a resposta saísse na medida certa que a pergunta requeria, a vida familiar no geral sofreria os efeitos do desconforto e, por certo, o encontro daquela noite não correria da melhor forma. E, na verdade, não vale a pena explicar por A+B, a quem não entende alguns pormenores, que a vida alheia só a si diz respeito.

Mas pior e relativamente inédito é quando nos encontramos com alguns amigos que já se constituíram como casais, sendo um deles ex-namorado de longa data e, de repente, no meio da conversa alguém pergunta: “E tu, quando arranjas um gajo porreiro, não é um como aquele da outra vez que te tratou mal e não prestava, mas um que te faça bem, que te queira para sempre e possas pensar em ter filhos?”. A perplexidade é total e apesar da boca se abrir, uma pessoa fica como peixe fora de água, os sons não saem e nem uma palavra se articula, apesar dos lábios se moverem, pelo que o discurso desconfortável continua: “Tu tens tanto para dar e devias pensar em ter filhos, olha que o tempo passa mais depressa do que pensas. Não esperes mais 20 anos para te juntares a alguém...”.

Pois até é verdade: o tempo passa e a vontade de ter filhos próprios, para não sentirmos que estamos a compensar a falta que nos fazem com os filhos dos outros, aumenta; a necessidade de ter um afecto torna-se por vezes insuportável porque a companhia com que sonhámos durante anos simplesmente não existe; a pessoa que desejámos para estar ao nosso lado todos os dias, que devíamos ter escolhido e que nos deveria ter desejado, que queríamos que estivesse sempre ali para nos ouvir, confortar, ajudar a ultrapassar dificuldades, partilhar momentos felizes e alegrias, construir uma vida, essa não passa de um sonho.

Mas a vida é assim e nem todos casam, como nem todos têm filhos, e nem todos conciliam os dois desejos num só. Não por falta de vontade própria mas por falta de encontro de vontades. E quando é assim não vale a pena correr atrás de um sonho que não tem condições para ser realizado.

E perante o cerco de perguntas, só dá vontade de responder aos gritos, para que nunca mais ninguém se esqueça dos nossos motivos e não volte a perguntar: Não, não casei até hoje porque os homens que passaram pela minha vida foram todos uns estafermos, porque não soube escolher e privilegiei sempre a emoção arrebatada à segurança tranquila, porque cresci a acreditar que dentro da maioria dos homens há bons sentimentos, que os transformam em príncipes doces e encantados. Só que eles não são assim, pelo menos os que conheci e pelos quais me apaixonei: de príncipes pouco ou nada tiveram. E até poderia argumentar que espero o tempo que for preciso entre uma entrega e outra, porque só consigo estar com um homem quando gosto dele, quando tenho sentimentos fortes e arrebatados e que, nesta altura, simplesmente não me apetece tê-los de novo, nem vejo por quem, que não sei quanto tempo esta fase vai durar mas que pode demorar uma eternidade e que também isso não me está a preocupar porque agora tenho outras prioridades. E dá vontade de perguntar: PERCEBERAM????

Manual de sobrevivência em meios socialmente hostis

Presenciando cenas pela manhã bem cedo recordo uma pessoa que conheci em São Tomé e Príncipe há uma eternidade e de quem perdi o rasto há ...