Observar os outros é uma actividade absolutamente
inspiradora sobretudo quando o alvo do nosso olhar atento não se apercebe que,
pelos motivos mais diversos, passou a ser do nosso interesse estimulando-nos a
criatividade. Aos meus olhos quase não há limites para a observação e para a
criatividade - e a excepção é a privacidade alheia.
Há tempos fui buscar alguém ao representante oficial de uma
marca de automóveis e enquanto aguardava pela sua chegada deparei-me com um
cenário magnífico para observação. Magnífico não por ser bonito mas, em boa
verdade, por ser hilariante. O representante automóvel era alemão, supostamente
marcado pelo rigor, exigência e trabalho árduo. Estacionei o carro pensando
caminhar à beira-rio e tirar fotografias a gaivotas e patos marinhos que por
ali abundam mas a maré estava vaza e o enquadramento ribeirinho não era famoso.
Antes pelo contrário, até era desolador e mal cheirento porque o lodo emergiu
com a falta de água e o único motivo interessante eram as gaivotas e andorinhas
marinhas a bicar o lodo em busca de moluscos. Então centrei-me no cenário à
minha frente: a zona da lavagem automóvel. Aparentemente não seria nada de mais
mas avisto dois homens, um português e outro de leste, que limpam à vez o
tablier de uma van. Ambos de luvas, conversam e riem muito mais do que limpam
e, talvez por isso, tenham de entrar e sair da carrinha à vez. Há
comportamentos absolutamente misteriosos e daí serem tão interessantes. Mas
muito mais aliciante é um africano, certamente proveniente da Guiné-Bissau, não
apenas pela fisionomia mas também por se chamar Baldé. O Baldé passou a ser meu
por alguns momentos porque captou toda a minha atenção e é absolutamente fascinante.
O homem só limpa filtros de ar condicionado e a forma como o faz é surpreendente.
Passo a explicar: não há jacto de ar nem pano, apenas o filtro e um sapato,
pelo que ele bate com as placas no longuíssimo pé calçado com uns ténis pretos.
À medida que bate com a placa no pé olha à sua volta pelo canto do olho como se
houvesse muito mais para observar mas não se apercebe sequer de que eu estou ali
e a observá-lo. Depois estica-se e dá uns dez passos com uma das placas que havia
encostado à parede. O ar que aparenta é um misto de cansaço com dedicação. Ele
sabe o que faz e demonstra preocupação com a eficácia do resultado. Como é
zeloso nem vale a pena atribuirem-lhe outras incumbências de forma a que a sua
prestimosa atenção não seja desviada. De repente percebo que, enquanto escrevo,
o meu Baldé desapareceu do meu campo de visão mas uma certeza eu tenho: ele
volta já que deixou aguns filtros encostados à parede sem os ter limpo com as acertivas
batidelas no pé. E eu... bem eu fiz um intervalo para fotografar gaivotas a
bicar o lodo porque acredito que quando o encantamento da paisagem abrandar ele
estará de volta para concluir a tarefa que assumiu na perfeição...