sábado, 16 de outubro de 2004

Guiné - Parte III

A minha estadia em Bissau foi decorrendo, comigo a confrontar-me com uma cultura bem diferente. Tudo me pareceu estranhamente sedutor - o crioulo e a forma como alguns se expressavam, os jogos de oril, com que a maioria dos homens ocupava o tempo, os cestos que as raarigas vendiam na rua, os postos de engraxamento de sapatos, as árvores carregadas de fruta, espalhadas pela cidade, os cheiros, a densidade atmosférica. Tudo me parecia estranho.
Tinha a certeza que ali não quereria viver mas começava a ter a estranha sensação das contradições que África provocava em todos aqueles que por lá passavam. A verdade é que depois da Guiné, o apelo por aquele continente ficou e fui regressando sempre que pude.
Os dias passavam-se entre a ONG onde desenvolvi as minhas pesquisas e a casa das missionárias onde estava alojada, em frente à Polícia Judiciária, rua sempre repleta de gente, que não cheguei a perceber se estava à espera de saber notícias de alguém que lá estivesse dentro em investigações ou se simplesmente tinha acompanhado alguém para efectuar uma queixa. Pensei sempre que a primeira hipótese era a mais provável. Mas nunca consegui aprofundar porque aprendi uma coisa importantíssima naquela estadia: num regime pouco democrático, ninguém gosta de falar e poucos são os que efectivamente o fazem. E o regime que se vivia era o de Nino Vieira, por isso a recomendação fez-se chegar rapidamente... nada de fazer perguntas como base em investigação por conta própria. Era mesmo melhor dedicar-me à pesquisa no terreno para a minha tese de Mestrado - o desenvolvimento local e as estratégias participativas. E lá fui eu ccontactar a ONG e outras instituições, nacionais e estrangeiras que desenvolviam trabalhos no âmbito do meu estudo.
Como não tinha apoios financeiros importantes, não pude alugar carro e as minhas deslocações na cidade faziam-se de taxi quase comunitário ou à la pate, o que me permitiu contactar ainda mais directamente com as populações locais, conhecer as ruas e andar por ali à solta. Foi uma experiência de vida única, apesar de ter por lá passado dias de isolamento, que me pareceram não ter fim, por não ter ninguém de grande proximidade para conversar.
As minhas incursões para fora de Bissau foram acompanhadas pelos missionários que me acolheram. Fui a Cumura, o hospital dos leprosos sem indícios de efectivamente o ser, a Bafatá, a Mansoa e a Cucilinta. Fiquei com uma ideia geral da "Guiné profunda" e visitei tabancas, fiz piqueniques nas zonas florestais e, claro está, fui a missas africanas. Mais uma realidade que me encantou, sobretudo quando eu, em Portugal, me recusava a frequentar as igrejas por ter a sensação de viver uma crise de fé e de desacreditação dos seus representantes máximos. Mas ali, a participação era uma realidade, a partilha de dificuldades, a disponibilidade para encontrar soluções, o tempo que não se esgotava, a boa vontade.
Regressei com a ideia que os missionários são bem diferentes dos religiosos tradicionais - são pessoas que dedicam a sua vida, não a rezar e a viver bem mas, a fazer bem aos outros e a ter uma vida contida, podendo confrontar-se com dificuldades sem fim, mas sem nunca recusarem o apoio a alguém que o pedisse ou se sentissem que o necessitava.
Depois, as crianças deixaram-me completamente rendida. Os olhos, o sorriso, a simplicidade dos gestos e a ausência de bens e de riqueza, mas com uma alegria de viver que nunca imaginei ser possível. Nós, no mundo desenvolvido, temos tudo e queremos continuamente ter mais por sermos consumisticamente insatisfeitos, aqueles nada tinham mas riam, cantavam, dançavam, pulavam e quando podiam brincavam.
Aprendi que ser melhor passa pela capacidade de nos darmos aos outros, sobretudo quando temos pouco para dar, de vivermos com pouco e mesmo assim estarmos contentes e satisfeitos só pelo facto de estarmos vivos.
Aprendi que a verdadeira sabedoria não está escrita nos livros nem nos tratados e não resulta sempre de grandes estudos. O sábio não é o estudioso de biblioteca, o que se intitula como tal ou aquele que tem um QI acima da média e que é vulgarmente considerado como uma sumidade.
Sábio é quem aprende através da experiência, quem vive o dia a dia com tal intensidade que o brilho que os seus olhos emitem pode iluminar uma noite de escuridão; quem tem humildade para aprender com os próprios erros e não condena os alheios; quem está igualmente disponível para uma conversa ou para aceitar o siêncio; quem não força sentimentos e os deixa fluir.
Regressei de Bissau com a sensação que tinha vivido a experiência mais dura, desde que que era gente. Para ser franca, não vivi nenhuma situação pessoalmente problemática, não me confrontei com violência ou com privações. Tive tudo o que precisei e senti-me apoiada por todos com quem contactei. A experiência dura resultou: da minha consciencialização que as imagens da TV não são forjadas, elas traduzem realidades, com as quais nunca imaginei contactar; da percepção que a distinção entre o bem e o mal ou o correcto e o incorrecto são puras convenções culturais porque ultrapassam em larga medida a imagem humana. E tudo isto aprendi com os missionários e com os guineenses.
Regressei com a consciência que aquela viagem não se repetiria, por muitas Áfricas que viesse a conhecer e mesmo que um dia mais tarde regressasse a Bissau.
E espero regressar...

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